“No
peito, não no ventre, a mãe vai gerando filhos.”
(Mia Couto)
Não
sem assombro, nos últimos dois ou três anos, tenho acompanhado a maneira como o
que se pretendia um inadiável trabalho de conscientização coletiva sobre a
importância da humanização dos partos descarrilou-se, inadvertidamente, em
oficina de disputas e neuroses injustificáveis.
Chegam-me,
por variadas fontes, histórias recorrentes de mulheres que, após meses de
preparação física e psíquica para um parto natural isento de intervenções
médicas, imergem em desolação ensandecida por decorrência de uma cesariana ou
mesmo de uma simples analgesia que se lhe impôs indispensável:
“A
Natureza equipou a mulher com todos os recursos para dar à luz naturalmente.
Nossas bisavós o fizeram, mas eu fui fraca.”
“Nunca
me perdoei por, depois de 26 horas suportando o insuportável, ter implorado por
uma anestesia.”
“Cesariana
não é parto: é intervenção cirúrgica. Por conseguinte, não pari.”
“Sinto-me
menos mulher.”
“Passaram-se
meses e ainda não digeri o meu fracasso.”
A
cada duas horas, dizem-nos as estatísticas, uma brasileira é assassinada. Os
números aterradores são também convite para que reflitamos sobre tantas outras
mortes que nos têm sido impostas nesses cinco mil anos de patriarcado
devastador. Mortes que, de tão sutis, jamais são contabilizadas e, por isso
mesmo, ceifam-nos com impiedade obscena.
Uma
mulher é morta quando, catequizada pelas cartilhas desse empoderamento
inverídico, renega os limites do próprio corpo, por acreditar que deveria
vestir-se de um estoicismo três números além ou comprimir-se numa
vulnerabilidade três aros aquém, para exercer o direito de habitar em si mesma.
De novo (e sempre!) vozes externas ditando costumes e reeditando tendências.
Cintos de castidade, espartilhos, pés-de-lótus, burcas, silicones.
Uma
mulher é morta quando, depois de quase 40 semanas de feliz expectativa, recebe
finalmente, nos braços, aquele serzinho tão desejado – quente, macio, coberto
de vérnix. Nada obstante, ao invés de Amor, sente desolação e pavor, porque
suas reservas de vivências foram-lhe paulatinamente subtraídas, quando a
convenceram de que o que experenciou foi “qualquer coisa”. Intercorrência.
Cirurgia. Nunca um parto. Como!? Se o que redunda de uma cesariana não é um
apêndice supurado ou uma vesícula inútil, mas uma vida toda fresca em sua
beleza pulsante.
No
zênite da Criação, de novo (e sempre!), a fêmea banida do paraíso. A culpa. O
choro e o ranger de dentes.
Essa
macabra desconstrução da maternidade, claro, desconsidera as mulheres que se
fazem mães pelas vias da adoção. Talvez porque, na utopia coletiva, adoção seja
filantropia. Ou derradeiro recurso a que algumas mulheres recorrem, para se
confortarem de uma possível infertilidade. Jamais uma dentre tantas
possibilidades bonitas de se trazer alguém à luz.
“O
mais importante e bonito, do mundo,” – sabia Guimarães Rosa – “ é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas…” A mãe que gesta
no coração também o sabe. Atina que a vida é feita de muitos nascimentos
insopitáveis e cotidianos. Sua maternidade é desataviada de batalhas por
empoderamento, porquanto desarmado e entregue é sempre o Amor.
Demanda-se
leveza de pássaro, quando o que se intenta é fazer-se ninho para o pouso de
outra vida. E a Vida –precisamos admitir – é a arte de gerenciar impotências
próprias e alheias. É preciso critério ante os comandos inflamados de
“–Mulheres, empoderem-se: vocês podem tudo!” O mito da onipotência humana é a
matéria-prima de uma sociedade inábil para o imprescindível exercício da
empatia, da convivência pacífica com a diversidade. Há bordões sonoros que
seduzem e que, no entanto, custam-nos as possibilidades todas de amar!
Uma
mulher torna-se mãe quando, em desdobramentos de Amor, traz à luz ela mesma e
aceita que sua fragilidade existe. É legítima quando, de coração apertado,
solta a mão de sua cria para os primeiros passos. Empluma-lhe as asas para
imperiosos voos solos a despeito das gaiolas do mundo; da densidade plúmbea das
ruas cuja violência atropela os que ainda se atrevem à Esperança. Inevitável. O
cotidiano e sua despoesia apressada, tomando ônibus, táxis, metrôs. O
Imprevisto espreitando de cada esquina.
O
coração dá à luz, quando descobre sua desmesurada capacidade de amar para além
dos laços de conjunções biológicas. Ou da própria Lógica. Buscar o filho num
abrigo é um modo lúcido e desobrigado de parir.
Nas
madrugadas em que todos os fantasmas de um passado de abandono reerguem-se,
feito borrasca espalhada por um céu de estanho, o conforto do Amor é jeito
delicado de dar à luz um filho. Aquecer-lhe a alma em retalhos com as colchas
que, vezes tantas, também nos faltam é parto. Fazê-lo comer – ao invés de
esculpir com o garfo – o purê de batatas também.
Uma
mulher torna-se mãe, quando faz o melhor que pode, mesmo quando o que lhe foi
imposto como dívida impagável por sua condição de fêmea grita-lhe que o seu
melhor nunca será o suficiente. Quisera ela ter respostas para tudo o que não
faz sentido, mas lhe golpeia a alma em perguntas desenfreadas! O menino
esmolando no estacionamento. A vida. A morte. O mundo, gigante terrível, que
aprisiona crianças em abrigos cheios de portas trancadas. As janelas com grades.
Quisera ela explicar as grades e as trancas! A fome. O bicho-homem. A estranha
matemática do Existir cujos cálculos não fecham: sobram filhos. Faltam pais.
Quisera ela o remédio para a traiçoeira dor que, vez ou outra, retorna por
alguma brecha oculta na alma de sua criança marcada por longos anos de falta e
espera!
Uma
mulher torna-se mãe, quando aprende a dessaber e, do cimo de sua insapiência,
aceita ajuda para o que não sabe ou não cabe. Dividir é maneira amorosa de
transbordar. Um filho nasce também de olhares alheios. De cuidados outros. De
mãos e mães diversas que pavimentam, em seus caminhos de medo, atalhos
trafegáveis.
Uma
mulher torna-se mãe, quando se rende: a doença do mundo existe. Indesmentível.
O reconhecimento é o primeiro passo para não se contaminar. Uma mulher torna-se
mãe quando se rende: o Amor existe. Indesmentível. O reconhecimento é o
primeiro passo para amar.
No
corre-corre doentio do mundo, filho é o Amor feito espanto. Nasce todos os dias
de partos-relâmpagos, sob o altíssimo risco de sequer notarmos o Milagre que é,
pela milésima primeira vez, aninhar ao peito esse Alguém que nunca se conclui;
mas que, entre sístoles e diástoles de Beleza, acontece. E, em detalhes de
finos êxtases que só podem ser vistos a coração nu, nos traz também à luz.
Por: Elenízia Bernardes
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